O Marinheiro

Era uma vez um marinheiro, entretanto este não mais se comportava como um. Era um marinheiro aposentado, havia se recolhido, se retirado dos mares para uma vida terrestre. Talvez tivesse sido oxidado pelo sol, talvez tivesse sido congelado por um vento frio, ou quem sabe apenas não visse mais sentido em estar dentro de um barco velejando por águas turvas ou cristalinas.

E por isso ele acabou por mudar-se para uma selva, selva de pedra. E engana-se quem pensa que as instabilidades da vida urbana amedrontavam o marinheiro. Rotina, segurança, insegurança, tudo isso não o incomodava tal como as inconstâncias dos mares vinham lhe perturbando nos últimos tempos.

E por isso ele abandonou os mares. Sentia que estava na hora de escolher seu próprio destino, de tomar o controle de sua existência e de não mais deixar que as estrelas lhe guiassem e que os ventos e a correnteza lhe transportassem para qualquer lugar.

E assim o marinheiro deixou de ser marinheiro para ser mais um dos inúmeros homens comuns que habitam este mundo. Ou não.

Ciclo

Ele pensava sobre quantas pessoas passaram por sua vida. Pessoas boas, ruins, pessoas que o marcaram ou não. Mas era inevitável também pensar sobre quantas destas, especialmente as boas, ou pelo menos que se diziam assim, o deixaram. É, o deixaram, esqueceram dele quando ele mais precisava. Quantas deixaram de notar que ele estava lá, quantas pessoas sequer o perceberam enquanto que tudo o que ele queria era ser visto por elas. Não notaram suas lágrimas, seus sorrisos, seus anseios, seus medos, enfim, ele pensava sobre as pessoas que nunca deram a mínima importância a ele.

E enquanto ele ponderava sobre todas essas pessoas, enquanto questionava inúmeras coisas sobre elas, deixava de ver outras. E talvez estas outras jamais deixaram de notá-lo.

Estrada para o prazer

A tradicional corrida debaixo das estrelas havia acabado naquela noite, e ele e seu Mustang, ganhado. Mais uma vez seu inseparável e velho carro negro como aquele céu e também como sua alma não o havia decepcionado. Poucos tinham uma parceria como a dele e a de seu carro. Seu cigarro caro e suas bebidas, alguns de seus amores, às vezes até entravam no negócio, mas a relação entre ele e seu carro era sempre forte. Os dois já dominavam aquela estrada deserta no meio do deserto, a qual levava até Las Vegas, há um bom tempo e realmente não havia quem os pudesse vencer. Os dois eram os donos daquele asfalto, quando ele fazia os pneus do Mustang cantarem, todas as vozes se silenciavam. Um espetáculo que todos paravam para ver.

Uma mulher então veio até ele para congratular. Ela pertencia a ele, era o bem que lhe fazia mal, era a joia roubada. Lábios vermelhos, unhas vermelhas, vestido curto vermelho, até seu cigarro ficou com a ponta vermelha, já que ela dera uma tragada. Ela era o próprio pecado e ele o pecador, o andar dela era tão perigoso quanto a corrida dele. Deram um beijo com gosto de adrenalina por entre a janela do carro e então ele abriu a porta e saiu, naquele momento era assistido por uma pequena plateia.

– Perdeu otário, agora me dá a grana que eu ainda quero torrar essa noite. – disse o vencedor ao perdedor, este agora saía de seu Camaro fracassado.

– Só no teu sonho, você sabe muito bem que trapaceou quando me empurrou pra fora da pista!

Ela então veio até ele, em uma das mãos um cigarro e no outro uma garrafa de Jack Daniels.

– Aqui não tem regra. – ele disse em tom de ultimato bebendo um generoso gole do uísque que tomara das mãos dela.

– E é por isso que eu tô indo embora… – desafiou o perdedor, a plateia reagiu.

– A grana! – o vencedor ordenou. – Apostou e perdeu, agora vai ter que pagar, otário!

O perdedor, decidido, entrou no carro e foi aí que o vencedor entregou a garrafa a sua amada e teve em suas mãos uma pistola que tirou de sua calça. Um tiro. Dois tiros. Pegou então a garrafa de uísque novamente e começou a beber enquanto as mãos sujas de sua mulher já vasculhavam os bolsos do agora falecido perdedor limpando todo o dinheiro que ele tinha. Aposta paga.

O corredor e sua mulher entraram então no carro. Mais um beijo intenso e perigoso, ela pega de volta a garrafa de uísque e entrega o dinheiro. Ascende um cigarro, o qual os dois dividiriam logo em seguida. E assim ele liga seu Mustang. Arranca com força. Ele sente virilidade, ela prazer. A plateia delira, aquelas duas criaturas acabaram de realizar o que todos querem fazer, mas que ninguém tem coragem.

E assim o dono daquela pista agora continuaria sua corrida, iria em direção a Las Vegas. O que faria lá? O perigoso homem e sua perigosa mulher gastariam todo o dinheiro que pegaram há pouco na cidade onde o perigo é mais que atraente e está em todo o canto.

Agora ele se tornaria novamente um rapaz e ela uma moça, os dois apenas brincariam de jogar pôquer, apostar dinheiro em roletas ou ainda passar a noite em hotéis luxuosos. Sim, brincariam. Voltariam a ser inocentes crianças querendo somente se divertir. Ou talvez crianças que pagariam qualquer preço por diversão, sendo que a diversão é na verdade o puro disfarce do prazer. O prazer que seduz, que envolve e que, acima de tudo, vicia. O prazer pelo qual se paga qualquer custo, podendo este ser até o preço de uma alma.

Mas, no fim das contas, de que vale a vida sem prazer?

Let It Rain

A tempestade se aproximava. Os ventos estavam furiosos, os trovões impetuosos e a escuridão tomava conta sem hesitar. Chegava o momento em que o fim parecia estar prestes a acontecer, o apocalipse havia chego. Era como se todos os medos, erros e arrependimentos viessem à tona, era como se os céus fossem desabar e não houvesse para onde correr.

Às vezes esse sentimento nostálgico de fim chega forte como uma tempestade até nós, o que nos faz sentir sem saída, sem salvação. Contudo, é geralmente quando nos sentimos assim que a saída está bem em nossa frente e é muito mais simples do que imaginamos.

Há momentos em que nos vemos em uma complicação tão exorbitante que não conseguimos raciocinar sobre como agir e então nos perguntamos o que fazer, para onde ir, como sentir-se a salvo… Tantas possibilidades enquanto a única coisa que deveríamos fazer é simplesmente deixar chover.

 

Morte por afogamento

Eu já não me debatia mais. E, sinceramente, nem mais queria me debater. Minha opinião sobre minha situação, meu momento, meu fim foi transformando-se na medida em que eu fui afundando e o azul do céu tornou-se mais difícil de ver diante do azul do mar. Sim, tudo ficou diferente assim que eu me dei conta de onde e como estava, minhas convicções idiotas caíram diante do que eu via, do que me hipnotizava. Eu estava simplesmente arrebatado por aquela imensidão azul, eu já não mais pensava em morrer, mas sim em aproveitar meus últimos momentos até que a morte chegasse ou até que o azul se tornasse tão escuro a ponto de eu chamá-lo de preto.

Era a hora, a minha hora. E por incrível que pareça, estava sendo maravilhoso, espetacular. Bom seria se todos tivessem uma morte tão bonita quanto a minha, bom seria se todos os que morressem no mar deixassem-se afogar por aquele infinito azulado e paradisíaco. Como eu havia chegado ali já não me importava mais, tudo o que eu vivi ficou para trás e agora eu só pensava em aproveitar cada instante, eu já havia aceitado que minha existência desapareceria ali. Não adiantaria brigar com o destino, não adiantaria mais tentar subir, respirar, se debater, eu já havia entendido e havia decidido morrer em paz no meio daquele universo azul interminável e desprovido de estrelas.

Meus problemas, lembranças, experiências, tudo, toda a minha vida me deixava literalmente com as últimas bolhas de ar que eu ainda conseguia expelir, estas cada vez mais raras e fracas saindo de meu nariz ou minha boca.

A efemeridade veio me provar ser verdadeira. Meu ciclo se encerrava ali, se fechava naquele momento. Mas ainda assim, meus olhos insistiam em permanecerem abertos, bem abertos para olhar todo aquele azul, tal como meus ouvidos para ouvirem aquele silêncio. Paz, talvez pela primeira vez em minha vida eu consegui senti-la. Ao menos uma vez, ela veio até mim. Antes tarde do que nunca. Meus lábios até sorriam demonstrando todo o encantamento que eu sentia envolvido por aquela cortina pacífica.

E nem mesmo o frio e a pressão eram capazes de abaterem-me. Para falar a verdade, eu nem mesmo os sentia. Era como se o calor me dominasse e eu talvez jamais tenha me sentido tão livre e leve em qualquer outra ocasião em minha vida. Era realmente uma partida que qualquer um desejava ter. Eu estava feliz. Não importava a bagagem que me puxava para baixo, meus últimos momentos foram excepcionais, me emanciparam de tudo, meus últimos momentos foram lindos instantes de paz. Era como se toda aquela água marítima equivalesse as lágrimas de felicidade que eu derramava em meu fim.

E foi tudo ficando escuro, cada vez mais escuro. Eu já não me enxergava ou me sentia. Havia acabado, deixado de existir. Mas era como se eu ainda estivesse ali, flutuando, e parecia que eu iria ficar eternamente naquele mar. Por mais que a efemeridade tenha me procurado, há quem diga que bons momentos são eternos, ou ainda ecoam pela eternidade. E sim, eu sabia que estaria ali para sempre. Eu em paz naquela imensidão azul.

Leaving, Breathing, Rebirthing

Plásticos cobrindo os móveis. Poeira. Janelas sem cortinas. Objetos encaixotados. Casa vazia. Clima de nostalgia, de despedida, de saída.

Eu caminhava sereno pelo local onde vivi anos e anos de minha vida. Os últimos, ao menos os últimos daquela vida. Estava indo embora e estava decidido. Estava deixando tudo para trás, estava enterrando uma parte de mim ali e me sentia um pouco frio por isso. Talvez estivesse sendo difícil largar inúmeras lembranças, estas boas e ruins, naquele local e simplesmente ir, caminhar em frente. Parecia mesmo que parte de mim estava ficando, ou que talvez eu estivesse me esvaziando por inteiro ou até morrendo.

Mas para preencher algo, é preciso de espaço, lugares vazios. E eu estava mesmo saturado, nada mais cabia em mim ao mesmo tempo em que eu necessitava de me preencher com coisas novas. A vida que eu vivia já não me satisfazia mais. E por isso resolvi me esvaziar dela. Resolvi me preencher com o novo, o inesperado, um novo estilo, uma nova rotina. Queria encher meus pulmões de ares frescos. Vida nova. Sim, quero experiências novas, memórias novas, um novo eu. Renascer e não mais reviver o mesmo dia.

E por isso eu iria partir e deixar aquele lugar. Lembranças são apenas lembranças. Servem para relembrar, mas não para reviver e menos ainda remoer. O que passou não devia importar tanto. O tempo não volta. Não é possível passar mais de uma vez por uma experiência boa e nem mesmo consertar uma que foi ruim. Passou, é passado e, sendo assim, às vezes o que se pode fazer é deixá-lo para trás, é deixar de olhar para trás.

E lá ia eu. Ia embora. Deixava naquela casa meus móveis e até mesmo alguns objetos ou roupas. Me deixava ali, pois aquele eu jamais existiria em outro lugar. Deixava minha vida, minha rotina, meus feitos e também algumas poucas lágrimas de saudade. Sempre se tem saudade de alguém que você jamais verá novamente. Levaria apenas as lembranças, mas apenas para relembrar de vez em quando.

Plásticos protegendo o passado. Respiração renovada. Olhos descobertos para o futuro. Sentimentos velhos encaixotados. Coração vazio pronto para ser recheado. Clima de mudança, de renovação, de renascimento.

O corte

Os fios condutores que levavam energia até as lâmpadas do local eram simplesmente inúteis, pois todas as luzes estavam apagadas. O que ajudava mesmo eram os cabos que conectavam os equipamentos do Dj com as caixas de som. Esses sim, pois faziam as caixas de som bombardearem a música, todos dançavam como se o mundo fosse acabar.

Contudo, no banheiro feminino os fios condutores que levavam energia até as lâmpadas eram mais úteis que os cabos do Dj, ainda que a música chegasse até o local com muita força. Lá, uma garota estava apoiada em uma das pias. Não encarava-se no espelho a sua frente, não tinha coragem, estava submissa a sua própria feição. Imagens de pessoas dançando, beijando-se, enfim, divertindo-se estando escravisadas a sua própria natureza sem a presença de luzes, passavam por sua mente. Todos lá, juntos, e ela ali, sozinha. Injusto? Talvez. Bem, a vida quem sabe seja mesmo injusta.

E era com sua vida que a garota estava conectada. Todos os que estavam na pista e não no banheiro, estavam ligados a música, tornaram-se submissos a ela. Estavam alheios a tudo, inclusive a si próprios, a música tem esse poder. Estavam desconectados. Mas ela não. Ela não conseguia, o vínculo com sua vida parecia bloquear qualquer outra onda que a pudesse levar. A força que seus problemas, dilemas, medos e vergonhas tinham sobre ela era forte demais, a ligação era intensa demais e ela já não sabia mais como desligar-se. A única coisa que ela sabia, é que já não aguentava mais o peso de si mesma.

A garota então ergueu sua cabeça e encarou a si mesma uma última vez. Era um adeus, por mais quela não fosse sentir a mínima saudade. Deu repentinamente uma cabeçada no espelho, imediatamente pode sentir seu sangue misturar-se a suas lágrimas. Catou em seguida um caco do espelho. Olhou para seu pulso, olhou mais especificamente para um fio que oscilava entre o verde e o roxo que havia debaixo de sua pele.

Quando não se consegue desconectar, o único jeito é cortar a conexão.

E foram estas as últimas palavras da garota.